terça-feira, 9 de outubro de 2018

Ensaio sobre a (minha) cegueira


Faz 4 dias que meu corpo luta contra um tersol, uma espécie de inflamação das pálpebras – no meu caso, a pálpebra superior do olho direito (sempre a direita a me incomodar...). É chato, esteticamente não agradável, e principalmente incômodo: como se eu tivesse um cílio dentro do olho o tempo todo a coçar.

Mas faz bem mais de 3 dias que luto contra algumas coisas que me impedem de ver claramente o que está a se passar. Quem me conhece sabe que acredito que todas as nossas doenças e moléstias têm uma causa mais profunda, não tão palpável... Assim, a inflamação no olho talvez representasse uma cegueira de outro tipo, um não-querer ver consciente e inconsciente de algumas situações, fatos e acontecimentos.

Senti o olho começar a incomodar na madrugada de sexta-feira, 05 de outubro. Estou em Lisboa, e nesse dia foi comemorada a instauração da República Portuguesa e o Dia do Professor. Duas datas carregadas de tanto simbolismo, que não me estranha serem no mesmo dia. Àqueles que desconhecem a história contemporânea de Portugal, de como uma Monarquia se transformou em República, recomendo que se informem – esse post não é para isso. Não vou explicar aqui esse processo pelo mesmo motivo da outra comemoração do dia: essa não é minha sala de aula.

Desde agosto de 2016 não estou mais em sala de aula do nível básico. Mas demorei esses quase dois anos para entender que continuo sendo professora. Era professora de História na Prefeitura Municipal de São Paulo, e vou voltar a ser – só ainda não sei o quê, nem onde. Percebi que consigo ensinar quase qualquer coisa que aprendo, e por isso hoje me considero (de novo) docente. Depois da saída traumática da prefeitura, não conseguia ver ao certo como seria o meu futuro, o que eu faria depois do Doutorado. Continuo ainda sem saber, mas já tenho confiança na minha capacidade de lecionar, e por enquanto, isso me basta.

O trauma da exoneração só não foi pior do que outro, o do golpe que parece nunca acabar. E aí, a minha cegueira foi autoconstruída. Comecei por dizer “não quero ver o que vai acontecer se derrubarem a Dilma”, depois “não quero nem imaginar o que esse governo vai fazer até o final do mandato”, até por fim “não quero acreditar que vão eleger o Bolsonaro”. E assim, os meus “não quero” foram me blindando, me protegendo de alguma forma do que acontecia fora do mundo acadêmico, permitindo que eu acompanhasse, à distância, o que estava acontecendo. Até que a realidade se chocou contra essa Torre de Marfim, e meus olhos não puderam mais ignorar o que viam: 46% dos eleitores brasileiros votaram em um candidato de extrema direita.

Esse número me fez enxergar, à força, meu maior medo: eu conheço eleitores do Bolsonaro. Eles não estão lá, distantes, e eu cá... Não... Com um número tão grande, percebi que convivi com pessoas que votaram nele, e vão fazê-lo novamente. Essa visão forçada me deu coragem para decidir que não vou mais “fechar os olhos” para política em prol de uma convivência harmoniosa, porque não se trata mais de uma questão eleitoral, é sobre o que eu gostaria ver no futuro. Na minha visão de mundo não há espaço para esse discurso irracional sobre gênero, raça, homossexualidade – e também não vai mais ter espaço para conviver com quem o apoia.

Quando tentei entender o que estava provocando o inchaço no meu olho, primeiro pensei no doutorado: “não estou conseguindo ver algo que está diante de mim”. Com certeza. Nenhuma pesquisa encerra um assunto ou tem conclusões definitivas. Logo, mesmo que eu consiga fazer uma investigação abrangente e um ótimo trabalho final, a tese, sempre vai escapar algo. Uma informação, um dado, uma referência bibliográfica. Faz parte do trabalho acadêmico essa inquietação permanente: e se eu deixei passar alguma coisa? O que eu não vi? O maior pesadelo de qualquer pós-graduando é enfrentar, na defesa, a acusação de que esqueceu algo importantíssimo – e é por isso que nos esforçamos tanto para dar conta de tudo.

Mas se é (até certo ponto) inevitável, por que tanto esforço então em querer enxergar tudo? Por que não aceitar essa idiossincrasia? Assim que o olho melhorou um pouco, corri para o cinema assistir “Shock and awe”, um filme sobre a construção do discurso da Guerra do Iraque, que já está quase fora de exibição. E lá estava a resposta: nós nos recusamos a ver as coisas como são. As explicações mais simples, mais diretas, não nos convencem. Temos dificuldade em enxergar “a vida como ela é”, então criamos cenários e personagens imaginários, e tentamos fazer com que se tornem reais. Queremos aquilo que é difícil e rebuscado, e deixamos de ver o que está bem na nossa frente, simplesmente porque não nos agrada.

A minha cegueira estava relacionada com uma ânsia de descobrir tudo que há para ser descoberto na minha pesquisa de Doutorado – o que pode não acontecer; com o não querer enxergar a gravidade da situação no Brasil – e as consequências de marcar minha posição política; e com a minha dificuldade em ver quem realmente sou, o que estou fazendo em Portugal – uma professora-investigadora sozinha, longe de casa, com pouquíssimos amigos e sentindo falta da família.

Esse episódio de cegueira me mostrou que a solidão é inerente a todos nós. Para mim, que gosto de conviver com pessoas, foi um processo doloroso encarar que, na maior parte do tempo, estou só. Tenho sim, gente com quem posso contar, mas fui forçada a encarar a dificuldade de fazer amizades aqui. Não tanto pelas pessoas em si, mas pela situação: pesquisar é uma atividade solitária. Assim como escrever. E então, movida pela cegueira e pela escrita, criei coragem de adquirir o livro mais recente do mais aclamado autor que já falou sobre não enxergar: Último Caderno de Lanzarote, de José Saramago.

Normalmente eu comento aqui sobre os livros que li, ou sobre o livro em si. Mas dessa vez, quero falar da expectativa futura da leitura, do ter em mãos um livro póstumo, o derradeiro. Foi publicado mesmo agora em outubro, está "fresco como pão", mas não é "do dia" . A Fundação José Saramago tornou público “O diário do ano do Nobel”, aquele que, para muitos, seria o momento consagrador de uma carreira, comemorado agora 20 anos depois – e que acabou esquecido no computador.

Para mim, ler um livro de Saramago estando aqui é um privilégio. E sendo este seu último, é tentar alcançar um estado de graça e de estranha intimidade – afinal, é um diário. Saramago escreveu sobre como a cegueira nos mostra aquilo que não queremos ver, retirando as máscaras que colocamos para esconder quem de verdade somos. A minha insignificante experiência com uma inflamação das pálpebras serviu para que eu finalmente enxergasse algumas coisas. E agora que vejo, não vou mais fechar os olhos, ainda que a visão não me agrade.



segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Livro (d)e Viagem

Existem livros que ajudam a planejar viagens. Os guias, os “Comer e Beber” ou aqueles livros-mapa que descrevem e ao mesmo tempo mostram os lugares da cidade em detalhes (adoro os meus da PubliFolha!). Existem também livros que falam de viagens, às vezes em forma de diário, outras vezes é o enredo da história, no melhor estilo road trip. Mas alguns livros simplesmente são viajantes: a gente empresta e quando vê, ele já foi mais longe que a gente.

Eu tenho um livro assim. Chama-se “A Parisiense: o guia de estilo de Ines de La Fressange com Sophie Gachet”. É um best-seller, publicado em 2011. Ganhei da minha mãe, e ela gostou tanto que acabou comprando um pra ela. O livro é o que o título diz: uma reunião de dicas e conselhos sobre as habitantes de Paris – sim, foi pensado por, e escrito para, mulheres. Não vou discutir se é sexista ou se reforça estereótipos. Não é esse meu propósito aqui. O livro parte de um lugar comum – o savoir vivre da Parisiense – e sabemos que, muitas vezes, eles realmente existem.

Ao longo dos anos, meu exemplar de “A Parisiense” se transformou em mais do que um simples guia. Ele foi à Paris mais vezes do que eu! Fez parte não só da minha experiência em Paris, mas da experiência das minhas amigas, que o levaram em suas estadias na Cidade Luz. O livro se transformou. Mudou de guia para relato de viagem, para caderno de anotações, ou para qualquer outra função que quiséssemos. Se tornou um livro viajante, pronto para embarcar.

Logo em sua primeira viagem internacional, voltou com dicas incríveis e uma aparência diferente – que nem a gente mesmo, que nunca volta do mesmo jeito depois de viajar. Comigo, passeou pelos principais pontos turísticos, pois o tempo era curto para aproveitar todas as suas indicações de lugares secretos. Mas agora, retornou de um long séjour, e fará companhia na estante aos seus amigos estrangeiros – isto é, se eu conseguir ir colocá-lo.


O problema de um livro de viagem-viajante é que suas páginas acumulam histórias, e folheá-lo é descobri-las sempre que ele é aberto. Desde que o recebi de volta, encontro nele algo novo todos os dias – uma dica ou lugar que não tinha visto na primeira vez. Não que eu esteja planejando ir à Paris em breve, e por isso o tenho consultado. “A Parisiense” é um guia, o tipo de livro que dispensa uma leitura sequencial, e pode/deve ser folheado sem ordem. Mas ele também é mais do que isso. Não é preciso desculpa como “vou viajar” para consultá-lo. Como as autoras escrevem, ser parisiense “é mais um estado de espírito”.


sexta-feira, 11 de agosto de 2017

#ForaTemer

Há 15 dias eu apresentava minha comunicação oral em um Simpósio Temático da ANPUH (Associação Nacional de História), na UnB. E esse foi o livro que viajou comigo para a capital. Mas já fazia tempo que “Anatomia de um instante” andava na minha bolsa. Eu nunca sei dizer ao certo quanto tempo demoro para ler um romance, se faz uma semana ou um mês que ele está andando comigo (claro, existem exceções). Mas nesse caso, aconteceu um detalhe curioso: posso afirmar com exatidão o dia em que esse livro foi para minha estante – 12 de dezembro de 2012.

A data correta – e quase cabalística – consegui rastrear por causa das redes sociais. Neste dia, fui à 14ª Festa do Livro da USP, e adquiri 4 livros. Esse foi um deles. Pelas datas, dá para perceber o tempo que demorei para ler este que foi considerado um dos melhores livros de 2011 pelo The Economist, e o melhor livro do ano pelos jornais espanhóis El País e El Mundo. Eu demorei mais de 4 anos para finalmente lê-lo, mas o timing não podia ser outro: a história de um golpe sendo lida no momento de outro golpe. E com o detalhe de, por uma semana, visitar Brasília, o cenário de um deles.

Esse livro fala do golpe de estado espanhol de 23 de fevereiro de 1981. Quantos de nós conhecemos ou ouvimos falar sobre ele? Eu aposto que poucos. Muito poucos. A leitura desse livro me instigou a conhecer mais da história contemporânea da Espanha. Na verdade, ele me obrigou a pesquisar e me informar para conseguir entender tudo que era descrito. E me fez lembrar de um episódio das minhas aulas de espanhol quando era adolescente. Em uma delas, quando a professora mostrou uma foto do Rei Juan Carlos, eu perguntei: “mas pra quê serve a monarquia na Espanha? O que esse Rei faz”? E ela então me respondeu: “a monarquia na Espanha é muito importante. Esse Rei evitou um golpe”.

Sim, o último golpe do estado espanhol, que tentava se tornar democrático e republicano depois da ditadura do General Franco. Que, na história da Espanha – repleta de golpes de estado – foi o único a ser filmado e transmitido pela TV. E que para o autor, até a publicação de “Anatomia de um instante” em 2010, era o único na história registrado pela televisão. Até o Impeachment da Presidente Dilma.

Porque em 17 de abril de 2016 nós vimos um golpe de estado ser transmitido pela TV. Em 31 de agosto de 2016 nós vimos esse golpe ser reforçado pela TV. Até então, a Espanha tinha conseguido ser o único país do mundo a ter registrado em áudiovisual um golpe de estado. Mas naquele domingo de abril, a Câmara dos Deputados cassou o mandato de uma presidente eleita, e numa quarta-feira de agosto o Senado confirmou a cassação. E pela 2ª vez desde o final da Ditadura Militar, o Brasil aplicou um dispositivo jurídico em cargos do executivo. E sancionou, “dentro da legalidade”, um golpe de estado.

O autor do livro, Javier Cercas, escreve que “o fato [do golpe de 23 de fevereiro de 1981] ter sido gravado é ao mesmo tempo a garantia da sua realidade e a garantia da sua irrealidade”. Naquele dia de abril eu me sentia exatamente assim, presenciando uma cena que, pelo contexto, beirava o surreal. Em agosto, veio o mal-estar. A sensação ruim, o gosto amargo na boca. Nada mudou, pelo contrário: continua o nojo por tudo, a ojeriza à qualquer discussão infrutífera. E a certeza de que aquela cagada ainda vai feder no banheiro por muito tempo.


Às vezes, a gente precisa de uma analogia para entender alguma coisa. Outras vezes, uma comparação. Esse livro funcionou para mim como uma comparação entre duas situações – Brasil e Espanha – e como uma analogia que criamos para tentar explicar algo complexo. Porque explicar o que aconteceu ano passado não é tarefa simples, mas aprender sobre o 23 de fevereiro pode nos ajudar a esclarecer algumas coisas. A primeira delas é que sim, foi golpe.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Ordem e Progresso


“Comandar muitos é o mesmo que comandar poucos. Tudo é uma questão de organização” Sun-Tzu

Todo mundo sabe que uma mudança de endereço tem dia marcado para acontecer, mas geralmente não tem data certa para terminar. E depois que tudo foi entregue, começa a parte de abrir as caixas e colocar as coisas no lugar. Nessa hora a gente entende o quanto é importante um mínimo de organização na fase pré-mudança: ficamos dias sem encontrar aquela roupa, ou aquele cabo do notebook, e só quando tudo está no devido lugar temos a sensação de que a mudança, enfim, terminou.
Essa associação entre a organização dos objetos e o sentimento de bem-estar em casa é uma das bases do método KonMari, desenvolvido pela japonesa Marie Kondo e conhecido em todo o mundo por seus livros “A Mágica da Arrumação” e “Isso Me Traz Alegria”, publicados no Brasil pela Sextante.

Logo que voltei à Divinópolis, Marie Kondo estava em alta na minha casa: minha mãe havia comprado os dois livros e, como de costume, queria muito que eu os lesse. Não havia melhor momento: recém-chegada, precisava dar um jeito de me organizar no novo espaço. A diferença é que, ao contrário da maioria das pessoas nessa situação, eu tinha menos objetos que o necessário para ocupar meu novo quarto. De forma singular, eu me encontrava na situação oposta daqueles que procuram a personal organizer – eu tinha espaço sobrando.
Com o início das aulas e as atividades letivas do semestre, acabei deixando a Marie Kondo de lado (a essa altura, carinhosamente já sendo chamada pelo nome). Com o fim das atividades presenciais na faculdade, comecei a passar mais tempo em casa, e aí a questão da organização voltou à tona. Para que eu pudesse ter espaço, outros o perderam, obviamente. Sendo assim, nada mais justo que eu tentasse ajudar àqueles que tinha prejudicado organizando seus objetos. E foi então que, retomando a leitura, entendi outra das bases do método KonMari: ninguém pode arrumar suas coisas por você.
Na verdade, não está escrito dessa forma nos livros. Mas o título  de um deles já sugere que aquilo que “me traz alegria” não é necessariamente aquilo que “te traz alegria”. Ou seja, cada um deve arrumar as próprias coisas, a própria casa. Essa postura é consequência da principal ideia do método: nós só devemos ter ou manter aquilo que nos faz feliz. E ninguém pode nos dizer o quê nos faz feliz, cabe a cada um escolher os objetos que lhe transmitem felicidade – por isso a arrumação é pessoal e intransferível.
Partindo dessa ideia central, a autora a desenvolve para mostrar que nos tornamos desorganizados e acumuladores quando não seguimos o princípio de manter apenas o que nos faz bem. O desdobramento disso é ainda mais prático: ao manter apenas o que nos traz alegria, devemos descartar o restante. No fundo, o método de arrumação de Marie Kondo contém em si a proposta do desapego, do descarte de objetos que perderam sua função ou utilidade, mas que sobretudo, não nos agrega boas vibrações.
É impossível não associar a filosofia do livro às filosofias orientais sobre a transitoriedade da vida e o desapego com o mundo material. Mas apesar dos dois livros tratarem do mesmo assunto – a “mágica” da arrumação –  é fácil perceber a diferença entre eles. O primeiro estabelece os princípios do método: manter apenas ‘o que te traz alegria’; a separação por categoria, não por localização; o ‘dia da organização’ como evento especial; o descarte em primeiro lugar e, por fim, como a organização transforma sua vida. Já o segundo livro, como o próprio nome diz, é um “guia ilustrado”, ou seja, contém indicações visuais e dicas de como aplicar diretamente o método KonMari.
De certa forma, o primeiro livro está contido no segundo. E é por isso que, se tivesse que indicá-lo a alguém, eu antes perguntaria o que a pessoa deseja com a leitura do livro. Aqueles que já estão decididos a começar uma arrumação em casa podem optar pelo segundo, afinal, já estão conscientes da necessidade (e dos benefícios) de arrumar a casa seguindo um método de organização. Mas para quem não tem muita certeza do que gostaria de fazer, ou quer descobrir uma maneira de organizar-se, o primeiro livro é perfeito.
No meu caso, os dois livros se complementaram: usei as dicas e a metodologia do guia ilustrado para organizar o guarda-roupa que eu tinha “desalojado” e os armários com objetos que mais usaria no dia a dia, enquanto que “A Mágica da Arrumação” me fez refletir sobre o espírito de acúmulo familiar, e como eu poderia lidar com isso.
Marie Kondo não precisou me convencer de como a organização transforma nossa vida. Há muitos anos percebi que arrumar guarda-roupas e armários me acalmava, e que as ideias vão se organizando à medida que as coisas também se organizam. Desenvolvi assim o que para alguns seria uma leve manifestação de TOC (Transtorno Obssessivo-Compulsivo), mas que para mim nada mais é do que reproduzir a sensação descrita no primeiro parágrafo: quando tudo está no devido lugar, a mudança enfim terminou.

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Quando o sol bater na janela do meu quarto

Nesse final de semana completaram-se 2 meses que mudei de volta para Divinópolis-MG, minha cidade natal. E respondendo à uma pergunta de um tio, percebi como está acontecendo esse processo de readaptação – e como o primeiro livro que terminei de ler depois da mudança tem a ver com isso.

Eu não me lembro exatamente quando foi que comprei “O Sol é Para Todos”, de Harper Lee, mas com certeza foi ano passado, quando lançou seu segundo romance, “Vá, coloque um vigia”. Acredito que ao ler as críticas, que mencionam o segundo romance como continuidade do primeiro, meu pensamento lógico resolveu: “vamos começar do começo”. E mesmo tendo sido adaptado para o cinema com muito sucesso, decidi que era melhor ler o livro antes de assistir o filme ganhador de 3 Oscars em 1963.

E foi com “O Sol é para todos” na mochila que viajei entre Divinópolis – Belo Horizonte – São Paulo no mês de Agosto. O livro me fez companhia e me ajudou a entender como mudanças acontecem sem que a gente perceba, especialmente aos olhos de uma criança. Não é o primeiro livro cuja história é narrada do ponto de vista infantil, e supostamente autobiográfico. Comecei a pensar se esse não seria um gênero da literatura norte-americana, junto com “O Apanhador no Campo de Centeio”, mas sendo universal como a literatura, percebi que existem obras assim também no Brasil: O Ateneu e Minha Vida de Menina, por exemplo.

Sou curiosa sobre esse “gênero literário” há muito tempo. Alguns apontam a narrativa em primeira pessoa como falha – crianças ou adolescentes não conseguiriam escrever de forma tão elaborada. Outros, para o traço autobiográfico (às vezes claro, às vezes não) como defeito que personaliza demais o livro. Acho que mesmo com as críticas, são histórias que se fossem contadas de outra forma, perderiam sua essência: relatar as mudanças de uma fase da vida. E depois de lê-los, a gente percebe que essas mudanças realmente nunca terminam.

“O Sol é para todos” é descrito na orelha do livro como “uma história atemporal sobre tolerância, perda da inocência e conceito de justiça”. Mas tolerância, inocência e justiça não são conceitos infantis. Eles nos acompanham a vida toda, e vão sendo alterados a partir de nossas experiências. Quando meu tio me perguntou como estava sendo a adaptação SP-Divinópolis, ele me lembrou o quanto eu mudei no período em que estive fora. Algumas pessoas sugeriram que eu sentiria falta do ritmo de São Paulo, das muitas opções pra tudo, enfim, das comodidades de uma cidade grande. Para minha surpresa, descobri que consigo ser mais tolerante aos “defeitos” de uma cidade do interior, e que perdi a minha inocência de adolescente, como era de se esperar depois de tantos anos.


Mas morar em São Paulo modificou completamente o meu conceito de justiça. Fez com que o certo e o errado ficassem cada vez mais claros, preto no branco, à medida que eu percebia o cinza da metrópole. E seria injusto dizer que só eu mudei nesse período. A cidade para qual voltei também não é mais a mesma – Graças a Deus! A literatura mostra que nem sempre as mudanças são percebidas, e a experiência nos diz que algumas não são bem vindas. Só que mudar é preciso, e por mais que seja clichê, a vida acontece é no fluxo. O legal é que ficam as histórias, que contam como nossos conceitos vão se alterando ao longo do tempo.

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Correria

Para ler ouvindo – OneRepublic, “I lived”


With every broken bone / I swear I lived

Dizem que todo corredor tem uma prova favorita. Aquela corrida que, sempre que abrem as inscrições, o coração dá uns pulinhos e você logo quer se inscrever. Quem gosta de correr e participar de corridas de rua, tem sempre uma “prova-alvo” em mente – é como chamamos o objetivo do treinamento: participar daquela corrida.

No meu caso, é uma cidade favorita para correr.

Desde que fui ao Rio de Janeiro pela primeira vez, há 6 anos, prometi a mim mesma que, sempre que possível, eu daria um jeito de correr naquele lugar. Nessa mesma viagem, eu decidi que minha primeira meia-maratona seria na Cidade Maravilhosa. Alguns meses depois, lá estava eu para correr 21km pela primeira vez. E foi incrível!

Consegui correr uma meia-maratona no Rio de Janeiro por três anos consecutivos, 2 vezes no mesmo trajeto. Adquiri uma familiaridade com a orla da Zona Sul que só quem corre nela pode ter. Fui melhorando os tempos, me sentindo cada vez mais confortável com distância. Até que em outubro de 2014, fraturei a clavícula num acidente de bicicleta.

Quando fui atropelada a caminho do treino de bike, meus primeiros pensamentos foram: “preciso avisar meus treinadores” e “estava atrasada pro treino”. Depois, já no hospital, com o diagnóstico confuso e sem ninguém sabendo direito quanto tempo eu ia demorar para me recuperar totalmente, pensei “não vai rolar o revezamento no autódromo de Interlagos”. É, o esporte fazia parte da minha rotina e eu não estava sabendo como lidar com a sua ausência. Até que alguém escreveu pra mim que entendia, que ficar afastada do trabalho era chato, que a quebra da rotina era um problema, mas que ruim mesmo era não poder praticar meu esporte.

A recuperação da fratura e o reinício dos treinos ocorreram quase simultaneamente. Voltar para São Paulo, voltar a trabalhar e retomar a rotina também foi parte desse processo. Eu aprendi que não dava pra ser tudo-ao-mesmo-tempo-agora, como eu queria. Tinha que ser um passo de cada vez. Às vezes, meu corpo ia me avisar que não tava rolando - as dores que se tornaram companheiras – em outras ele me ajudava pedindo que eu experimentasse outras formas de movimento – e assim surgiu a paixão pelo Pilates. Aos poucos, eu voltei a pensar em quais seriam os próximos desafios na corrida.

Corri a Volta a Ilha, fiz provas de 10, 15km... Mas a corrida não ocupava mais o centro. O importante era me recuperar – e bem! Andei algumas vezes na bike, cumpri religiosamente as sessões de fisioterapia e fui assídua no Pilates. Voltei a correr, porém pensando mais no meu bem-estar do que em performance, em quebra de recorde pessoal. E nesse processo, comecei a ter uma relação com meu esporte que deu à ele sua devida importância: se tornou um meio, e não um fim.

Com isso, me senti pronta pra ir adiante e tentar fazer outras coisas. Não apenas na corrida, mas na vida também. Me arrisquei no trabalho, mudei meus objetivos de estudo, e posso dizer que até o estado civil foi alterado. Quando chegou a vez do esporte, não tinha mais dúvida: se eu queria fazer algo novo, que fosse no Rio de Janeiro.

E assim, me preparei para correr 32km na Maratona do Rio. “Oi, como assim? A Maratona não tem 42.195?” É, só que eu quis fazer algo novo, diferente. Quis fazer por mim. Ajustei os treinos, a dieta e a rotina, e assim foi. No dia, saí junto com o pessoal da Maratona, corri a maior parte do percurso, e parei na placa do km32. Não peguei medalha, não comi a batata nem tomei a coca-cola sem gás. Mas cumpri meu objetivo feliz da vida, com a consciência tranquila de que aquilo era o que eu queria ter feito. “Mas não dava pra chegar até o final?” alguns perguntaram. Não, não dava. Minha linha de chegada era onde meu coração me pediu pra parar.

O engraçado é que depois não teve “férias” ou aquele sentimento de que “e agora, o que eu faço?”. Depois, vieram outros desafios, mais acadêmicos, intelectuais. Ausência nos treinos também, por que não? A vida apresenta outras provas e desafios, e assim, a gente vai escolhendo o que quer fazer ou não.

Na preparação pros “32 no Rio”, rolou muita leitura sobre corrida, além dos treinos, é claro. Encarar longas distâncias envolve se preparar mentalmente também – vão ser muitos kms tendo a si mesmo como companhia. Quando voltei a correr pós-fratura, prometi a mim mesma que ia tentar me livrar da música enquanto corria. Consegui, até certo ponto (na esteira não rola sem!). Descobri que não é preciso ser radical, ser flexível faz bem.

Li “50/50”, o livro de Dean Kanazes sobre seu desafio de correr 50 maratonas em 50 dias, uma em cada Estado Norte-Americano. A rotina, as dicas, tudo me ajudou no meu próprio desafio. Foi uma leitura prazerosa, e até divertida, quando percebi que nem sempre meus treinos fluíam como eu gostaria, e nem as provas de Karnazes saíam sempre dentro do planejado. Durante a prova, eu me lembrava que tinha escolhido estar ali, correr aquela prova. Que aquela tinha sido uma opção minha, e que sendo responsável por ela, tive que fazer escolhas para estar ali.


O ombro quebrado me ensinou a fazer essas escolher sem ter peso na consciência de que “não estou conciliando tudo”. A recuperação se transformou num processo de autoconhecimento – e esse, não vai ter fim. Saber o que você quer ser, o que quer fazer, e ficar em paz com suas escolhas não é fácil. Mas a vida, os livros, e a corrida me ajudam sempre.


segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

2.9 é quase 30

Janeiro passou, carnaval veio e foi e, de repente, já estou nos 45 do segundo tempo de fevereiro – porque ano bissexto vai até os acréscimos! Quando eu vi, não estava mais cumprindo aquela promessa de virada de ano: “publish or perish”. Mas ainda bem que tem a prorrogação...

Se eu proponho que esse espaço concentre minhas reflexões pessoais, talvez eu devesse começar a refletir mais por escrito. Porém, como canta a Tiê, “palavras não bastam”. E hoje, me deparo com o problema de ter um blog: o quanto revelar de si mantendo o mistério, a discrição, e sobretudo, a privacidade. O que eu quero falar versus o que o outro entende do que escrevo. E também, o quanto de verdade coloco nos meus escritos.

É triste encarar que não consigo produzir conteúdo suficiente para o blog por um simples motivo: não leio tanto quanto precisava. Tenho mantido a média de um livro por mês, às vezes mais, às vezes menos, dependendo do gênero e do estilo. Em algum momento quando pensei esse espaço, estabeleci que isso não era suficiente. Uma vez que esse não seria um blog de literatura, resenhas ou críticas, eu deveria conhecer mais sobre livros – só que nem eu mesma sabia o que isso significava.

Pois, começando semana passada o último ano para mudar de régua (leia-se “fiz 29 anos”) resolvi mandar às favas esses meus pré-requisitos e pré-conceitos. Escrever para mim é um prazer, que veio ao lado de outro, inseparável: ler. Logo, se leio, escrevo. E todo professor lê muito: notícias, trabalhos de alunos, livros didáticos, textos de formação. Por que não escrever sobre eles? O que me impede de refletir por escrito sobre o meu cotidiano não-literário? Por que raios eu achava que tinha que “acumular conteúdo e conhecimento” para escrever?

Perceber que estou “quase nos 30” me abriu os olhos para algumas amarras que venho carregando comigo. Ter sempre algo inteligente para dizer, manifestar opinião sobre tudo, conhecer filosofia, sociologia, ler os clássicos, assistir sempre aos filmes cults e alternativos. Ser boa filha, boa professora, correr cada vez mais e melhor, cozinhar como uma chef, entender de vinho, alimentação saudável e fotografia. E por aí vai... A vida foi ficando chata, uma (auto)cobrança sem fim e, o pior: sem motivo. Perdeu a graça.


Uma hora a gente cansa disso tudo, né? E não basta 30 dias de férias pra gente se reciclar e tentar rever nossas posturas. Também não são 30 minutos de meditação ou de exercício físico 3 vezes por semana que vão solucionar o problema. Pra mim, é quando a gente faz aniversário que alguma coisa muda dentro da gente: mais um ano pra gente aproveitar a vida - a nossa, e de quem a gente ama.