segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Livro (d)e Viagem

Existem livros que ajudam a planejar viagens. Os guias, os “Comer e Beber” ou aqueles livros-mapa que descrevem e ao mesmo tempo mostram os lugares da cidade em detalhes (adoro os meus da PubliFolha!). Existem também livros que falam de viagens, às vezes em forma de diário, outras vezes é o enredo da história, no melhor estilo road trip. Mas alguns livros simplesmente são viajantes: a gente empresta e quando vê, ele já foi mais longe que a gente.

Eu tenho um livro assim. Chama-se “A Parisiense: o guia de estilo de Ines de La Fressange com Sophie Gachet”. É um best-seller, publicado em 2011. Ganhei da minha mãe, e ela gostou tanto que acabou comprando um pra ela. O livro é o que o título diz: uma reunião de dicas e conselhos sobre as habitantes de Paris – sim, foi pensado por, e escrito para, mulheres. Não vou discutir se é sexista ou se reforça estereótipos. Não é esse meu propósito aqui. O livro parte de um lugar comum – o savoir vivre da Parisiense – e sabemos que, muitas vezes, eles realmente existem.

Ao longo dos anos, meu exemplar de “A Parisiense” se transformou em mais do que um simples guia. Ele foi à Paris mais vezes do que eu! Fez parte não só da minha experiência em Paris, mas da experiência das minhas amigas, que o levaram em suas estadias na Cidade Luz. O livro se transformou. Mudou de guia para relato de viagem, para caderno de anotações, ou para qualquer outra função que quiséssemos. Se tornou um livro viajante, pronto para embarcar.

Logo em sua primeira viagem internacional, voltou com dicas incríveis e uma aparência diferente – que nem a gente mesmo, que nunca volta do mesmo jeito depois de viajar. Comigo, passeou pelos principais pontos turísticos, pois o tempo era curto para aproveitar todas as suas indicações de lugares secretos. Mas agora, retornou de um long séjour, e fará companhia na estante aos seus amigos estrangeiros – isto é, se eu conseguir ir colocá-lo.


O problema de um livro de viagem-viajante é que suas páginas acumulam histórias, e folheá-lo é descobri-las sempre que ele é aberto. Desde que o recebi de volta, encontro nele algo novo todos os dias – uma dica ou lugar que não tinha visto na primeira vez. Não que eu esteja planejando ir à Paris em breve, e por isso o tenho consultado. “A Parisiense” é um guia, o tipo de livro que dispensa uma leitura sequencial, e pode/deve ser folheado sem ordem. Mas ele também é mais do que isso. Não é preciso desculpa como “vou viajar” para consultá-lo. Como as autoras escrevem, ser parisiense “é mais um estado de espírito”.


sexta-feira, 11 de agosto de 2017

#ForaTemer

Há 15 dias eu apresentava minha comunicação oral em um Simpósio Temático da ANPUH (Associação Nacional de História), na UnB. E esse foi o livro que viajou comigo para a capital. Mas já fazia tempo que “Anatomia de um instante” andava na minha bolsa. Eu nunca sei dizer ao certo quanto tempo demoro para ler um romance, se faz uma semana ou um mês que ele está andando comigo (claro, existem exceções). Mas nesse caso, aconteceu um detalhe curioso: posso afirmar com exatidão o dia em que esse livro foi para minha estante – 12 de dezembro de 2012.

A data correta – e quase cabalística – consegui rastrear por causa das redes sociais. Neste dia, fui à 14ª Festa do Livro da USP, e adquiri 4 livros. Esse foi um deles. Pelas datas, dá para perceber o tempo que demorei para ler este que foi considerado um dos melhores livros de 2011 pelo The Economist, e o melhor livro do ano pelos jornais espanhóis El País e El Mundo. Eu demorei mais de 4 anos para finalmente lê-lo, mas o timing não podia ser outro: a história de um golpe sendo lida no momento de outro golpe. E com o detalhe de, por uma semana, visitar Brasília, o cenário de um deles.

Esse livro fala do golpe de estado espanhol de 23 de fevereiro de 1981. Quantos de nós conhecemos ou ouvimos falar sobre ele? Eu aposto que poucos. Muito poucos. A leitura desse livro me instigou a conhecer mais da história contemporânea da Espanha. Na verdade, ele me obrigou a pesquisar e me informar para conseguir entender tudo que era descrito. E me fez lembrar de um episódio das minhas aulas de espanhol quando era adolescente. Em uma delas, quando a professora mostrou uma foto do Rei Juan Carlos, eu perguntei: “mas pra quê serve a monarquia na Espanha? O que esse Rei faz”? E ela então me respondeu: “a monarquia na Espanha é muito importante. Esse Rei evitou um golpe”.

Sim, o último golpe do estado espanhol, que tentava se tornar democrático e republicano depois da ditadura do General Franco. Que, na história da Espanha – repleta de golpes de estado – foi o único a ser filmado e transmitido pela TV. E que para o autor, até a publicação de “Anatomia de um instante” em 2010, era o único na história registrado pela televisão. Até o Impeachment da Presidente Dilma.

Porque em 17 de abril de 2016 nós vimos um golpe de estado ser transmitido pela TV. Em 31 de agosto de 2016 nós vimos esse golpe ser reforçado pela TV. Até então, a Espanha tinha conseguido ser o único país do mundo a ter registrado em áudiovisual um golpe de estado. Mas naquele domingo de abril, a Câmara dos Deputados cassou o mandato de uma presidente eleita, e numa quarta-feira de agosto o Senado confirmou a cassação. E pela 2ª vez desde o final da Ditadura Militar, o Brasil aplicou um dispositivo jurídico em cargos do executivo. E sancionou, “dentro da legalidade”, um golpe de estado.

O autor do livro, Javier Cercas, escreve que “o fato [do golpe de 23 de fevereiro de 1981] ter sido gravado é ao mesmo tempo a garantia da sua realidade e a garantia da sua irrealidade”. Naquele dia de abril eu me sentia exatamente assim, presenciando uma cena que, pelo contexto, beirava o surreal. Em agosto, veio o mal-estar. A sensação ruim, o gosto amargo na boca. Nada mudou, pelo contrário: continua o nojo por tudo, a ojeriza à qualquer discussão infrutífera. E a certeza de que aquela cagada ainda vai feder no banheiro por muito tempo.


Às vezes, a gente precisa de uma analogia para entender alguma coisa. Outras vezes, uma comparação. Esse livro funcionou para mim como uma comparação entre duas situações – Brasil e Espanha – e como uma analogia que criamos para tentar explicar algo complexo. Porque explicar o que aconteceu ano passado não é tarefa simples, mas aprender sobre o 23 de fevereiro pode nos ajudar a esclarecer algumas coisas. A primeira delas é que sim, foi golpe.