Faz 4 dias que meu corpo luta
contra um tersol, uma espécie de inflamação das pálpebras – no meu caso, a
pálpebra superior do olho direito (sempre a direita a me incomodar...). É
chato, esteticamente não agradável, e principalmente incômodo: como se eu
tivesse um cílio dentro do olho o tempo todo a coçar.
Mas faz bem mais de 3 dias que
luto contra algumas coisas que me impedem de ver claramente o que está a se
passar. Quem me conhece sabe que acredito que todas as nossas doenças e
moléstias têm uma causa mais profunda, não tão palpável... Assim, a inflamação
no olho talvez representasse uma cegueira de outro tipo, um não-querer ver
consciente e inconsciente de algumas situações, fatos e acontecimentos.
Senti o olho começar a incomodar
na madrugada de sexta-feira, 05 de outubro. Estou em Lisboa, e nesse dia foi
comemorada a instauração da República Portuguesa e o Dia do Professor. Duas
datas carregadas de tanto simbolismo, que não me estranha serem no mesmo dia.
Àqueles que desconhecem a história contemporânea de Portugal, de como uma Monarquia
se transformou em República, recomendo que se informem – esse post não é para
isso. Não vou explicar aqui esse processo pelo mesmo motivo da outra
comemoração do dia: essa não é minha sala de aula.
Desde agosto de 2016 não estou
mais em sala de aula do nível básico. Mas demorei esses quase dois anos para
entender que continuo sendo professora. Era professora de História na
Prefeitura Municipal de São Paulo, e vou voltar a ser – só ainda não sei o
quê, nem onde. Percebi que consigo ensinar quase qualquer coisa que aprendo, e
por isso hoje me considero (de novo) docente. Depois da saída traumática da
prefeitura, não conseguia ver ao certo como seria o meu futuro, o que eu faria
depois do Doutorado. Continuo ainda sem saber, mas já tenho confiança na minha
capacidade de lecionar, e por enquanto, isso me basta.
O trauma da exoneração só não foi
pior do que outro, o do golpe que parece nunca acabar. E aí, a minha cegueira foi
autoconstruída. Comecei por dizer “não quero ver o que vai acontecer se
derrubarem a Dilma”, depois “não quero nem imaginar o que esse governo vai fazer
até o final do mandato”, até por fim “não quero acreditar que vão eleger o
Bolsonaro”. E assim, os meus “não quero” foram me blindando, me protegendo de
alguma forma do que acontecia fora do mundo acadêmico, permitindo que eu
acompanhasse, à distância, o que estava acontecendo. Até que a realidade se
chocou contra essa Torre de Marfim, e meus olhos não puderam mais ignorar o que
viam: 46% dos eleitores brasileiros votaram em um candidato de extrema direita.
Esse número me fez enxergar, à
força, meu maior medo: eu conheço eleitores do Bolsonaro. Eles não estão lá,
distantes, e eu cá... Não... Com um número tão grande, percebi que convivi com
pessoas que votaram nele, e vão fazê-lo novamente. Essa visão forçada me deu
coragem para decidir que não vou mais “fechar os olhos” para política em prol
de uma convivência harmoniosa, porque não se trata mais de uma questão
eleitoral, é sobre o que eu gostaria ver no futuro. Na minha visão de mundo não
há espaço para esse discurso irracional sobre gênero, raça, homossexualidade –
e também não vai mais ter espaço para conviver com quem o apoia.
Quando tentei entender o que
estava provocando o inchaço no meu olho, primeiro pensei no doutorado: “não
estou conseguindo ver algo que está diante de mim”. Com certeza. Nenhuma pesquisa
encerra um assunto ou tem conclusões definitivas. Logo, mesmo que eu consiga
fazer uma investigação abrangente e um ótimo trabalho final, a tese, sempre vai
escapar algo. Uma informação, um dado, uma referência bibliográfica. Faz parte
do trabalho acadêmico essa inquietação permanente: e se eu deixei passar alguma
coisa? O que eu não vi? O maior pesadelo de qualquer pós-graduando é enfrentar,
na defesa, a acusação de que esqueceu algo importantíssimo – e é por isso que
nos esforçamos tanto para dar conta de tudo.
Mas se é (até certo ponto)
inevitável, por que tanto esforço então em querer enxergar tudo? Por que não
aceitar essa idiossincrasia? Assim que o olho melhorou um pouco, corri para o
cinema assistir “Shock and awe”, um filme sobre a construção do discurso da
Guerra do Iraque, que já está quase fora de exibição. E lá estava a resposta:
nós nos recusamos a ver as coisas como são. As explicações mais simples, mais
diretas, não nos convencem. Temos dificuldade em enxergar “a vida como ela é”,
então criamos cenários e personagens imaginários, e tentamos fazer com que se
tornem reais. Queremos aquilo que é difícil e rebuscado, e deixamos de ver o
que está bem na nossa frente, simplesmente porque não nos agrada.
A minha cegueira estava
relacionada com uma ânsia de descobrir tudo que há para ser descoberto na minha
pesquisa de Doutorado – o que pode não acontecer; com o não querer enxergar a
gravidade da situação no Brasil – e as consequências de marcar minha posição
política; e com a minha dificuldade em ver quem realmente sou, o que estou
fazendo em Portugal – uma professora-investigadora sozinha, longe de casa, com
pouquíssimos amigos e sentindo falta da família.
Esse episódio de cegueira me
mostrou que a solidão é inerente a todos nós. Para mim, que gosto de conviver
com pessoas, foi um processo doloroso encarar que, na maior parte do tempo,
estou só. Tenho sim, gente com quem posso contar, mas fui forçada a encarar a
dificuldade de fazer amizades aqui. Não tanto pelas pessoas em si, mas pela situação:
pesquisar é uma atividade solitária. Assim como escrever. E então, movida pela
cegueira e pela escrita, criei coragem de adquirir o livro mais recente do mais
aclamado autor que já falou sobre não enxergar: Último Caderno de Lanzarote, de José Saramago.
Normalmente eu comento aqui
sobre os livros que li, ou sobre o livro em si. Mas dessa vez, quero falar da
expectativa futura da leitura, do ter em mãos um livro póstumo, o derradeiro.
Foi publicado mesmo agora em outubro, está "fresco como pão", mas não é "do dia" .
A Fundação José Saramago tornou público “O diário do ano do Nobel”, aquele que,
para muitos, seria o momento consagrador de uma carreira, comemorado agora 20 anos depois – e que acabou
esquecido no computador.
Para mim, ler um livro de
Saramago estando aqui é um privilégio. E sendo este seu último, é tentar
alcançar um estado de graça e de estranha intimidade – afinal, é um diário.
Saramago escreveu sobre como a cegueira nos mostra aquilo que não queremos ver,
retirando as máscaras que colocamos para esconder quem de verdade somos. A minha
insignificante experiência com uma inflamação das pálpebras serviu para que eu
finalmente enxergasse algumas coisas. E agora que vejo, não vou mais fechar os
olhos, ainda que a visão não me agrade.